por Ana Paula Germano
Uma mancha escura na lua (Gatikat). Uma história contada milhares de vezes, passada de geração em geração. Muitos sentidos, muitas lições. Diferentes versões, uma lei importante: a vida deve seguir esta regra, é ela quem determina quem vive na terra e quem deve ir pro céu, longe dos vivos.
Esta história se passa nos tempos antigos: quando todos os seres vivos habitavam a Terra de forma harmoniosa, quando os deuses se comunicavam com os homens através dos animais, quando céu (Gâni), terra e estrelas (Txoykab) ainda estavam se formando. Tudo começou com uma moça, que chegara à idade adulta. Todos os dias ao se recolher para dormir, ela recebia a visita de um estranho. Esse homem, cujo rosto a escuridão encobria, se deitava com ela e partia antes do amanhecer. Nunca falava, nunca revelava a sua identidade, apenas se amavam, nada mais.
A moça, muito curiosa para saber quem era o seu amor, teve uma ideia. Preparou uma tinta de jenipapo para marcar o rosto do amado. Assim, descobriria, à luz do dia, quem era a pessoa que carregava a mancha. Mais uma noite chegou e com ela o seu amor. Num momento de distração, a moça mergulhou sua mão na tinta e acariciou o rosto do homem, que nada percebeu. Na manhã seguinte, a moça perguntou à sua mãe se ela tinha visto alguém com o rosto manchado de jenipapo. Ela acreditava que era o seu tio materno, já que na cultura Paiter, é o tio que se casa com a sobrinha. A mãe, que já sabia dos encontros, desesperou-se imediatamente. O homem era o irmão da moça!
Assim como em outras culturas, o incesto é um tabu, passível de muitas punições. Os Paiter não podiam aceitar a desobediência de uma lei tão importante: irmãos não podem se relacionar. Como castigo, os dois foram mandados para bem longe da aldeia, o mais longe o possível, um outro mundo: o céu, onde moram as estrelas. Subiram, por um cipó que ligava Terra e Lua e lá ficaram, como pena pelo crime que cometeram.

A Lua cheia. Crédito: Ana Paula Germano
Hoje, a lua lembra os Paiter, todos os meses, da vergonha e da proibição da relação amorosa entre os irmãos: a mancha escura da lua é o rosto pintado de jenipapo do homem, e a face clara é o rosto da mulher. É pela lenda que os mais velhos explicam às gerações mais novas a existência das manchas escuras da lua. Mas para os Paiter, isso não é apenas uma lenda. É a razão que explica a ordem das coisas, que explica o sentido da vida, que reflete o céu e na terra e os ensina a viver num mundo onde cultura e natureza não se separam e todas as coisas têm relação.